sábado, 9 de fevereiro de 2013

Abismo


                Ando ensaiando alguns discursos pra algumas fases da minha vida. Certos textos pré-elaborados, podem ser usados para mais de uma pessoa e para mais de mil situações. Uma adaptação daqui, outra dali, mudanças nos pronomes de tratamento, emprego certo do ‘jeitinho brasileiro’, e pronto. Metade dos meus problemas são resolvidos. Em alguns casos mudo a voz, o jeito de olhar, mas nada que me exija mais de 3 segundos de pensamento puramente mecânico. Tenho uma queda sentimental pela teoria dos 3 segundos. Uma vez aprendida, o mundo nunca mais foi visto do mesmo jeito por mim. Se você tiver o controle da situação, feita qualquer que seja a ‘cagada’, você tem 3 segundos para alcançar o inconsciente de quem foi atingido pelo erro e mudar. Mas apenas 3 segundos, então, raciocine rápido ou nunca se dê a condição de errante. E então eu descobri a fórmula que possivelmente acabaria com a maior parte dos meus problemas da vida: regra dos 3 segundos + discursos pré-elaborados. Pronto. Com isso sua chance de ser um ganhador aumenta em aproximadamente 25%. Parece pouco, mas comece a ver por esse ângulo a partir de agora e esses 25%, são na maioria das vezes tudo o que você precisa!

“Doutor, me ajuda. Comecei com minhas teorias malucas de novo. Onde está o senhor? Creio que deveria ser um deus para mim. Embora eu sempre o mande calar a boca, a sua presença me faz bem.”

A verdade é que nesse momento, os discursos que eu tinha falharam. Como assim? Estou sem palavras? Confusa? Natália, você sempre teve o controle da situação... Acorda Natália, o que causou essa interferência em seus pensamentos? Auto controle... Auto contro... Aut...

Jack é assim como eu. Também tem pensamentos estranhos e também é uma pessoa que não faz muito sentido. Por isso nossa amizade deu certo de cara. Jack é um homem encantador. Não me olha nos olhos, me questiona e me intriga. Aparece apenas quando sente que preciso de seu ombro amigo. E ri de mim quando estou assim sensível. Jack só aparece quando estou sensível e há um passo da beira do abismo. O abismo para nós dois tem uma conotação diferente, onde o resto do mundo chamaria de oasis ou paraíso. Essa noite, Jack apareceu. Sentou-se a beira da minha cama, afagou meus cabelos me pedindo que não abrisse os olhos. Simplesmente curvou-se contra meu rosto e disse sussurrando em meus ouvidos:

“Admita!”

Após isso, já não havia mais a presença da energia de Jack, ele se fora me deixando novamente com mil interrogações dentro da cabeça. Ah Jack! Por que você faz isso comigo? O abismo está há poucos centímetros de mim e você quer que eu admita? Como assim admita? Você está abalando a nossa amizade. Estamos em uma placa tectônica dessa vez. Jack, já não existe mais Pangeia, repense esses seus atos. Você me fez chorar hoje. E isso não é nem um pouco elegante.

“Doutor, você e Jack estão me apunhalando pelas costas. Onde compraram essas adagas? Parecem ter a mesma afiação.”

A frase de Jack, constituída de uma única palavra, um verbo no imperativo me soou muito mal e alojou-se dentro de mim de uma maneira insuportável. E eu acordei em plena madrugada, quando normalmente não estou dormindo (A madrugada é linda pra perder tempo com os olhos fechados) atormentada. E o ADMITA cravou-se, me deixando refém do meu conjunto, corpo, alma e pensamentos. E aí sim,  quem tinha o escudo dos 3 segundos mais discursos pré-elaborados, tornou-se um espírito fracassado numa proporção de aproximadamente 50% mais que das outras vezes. E isso estava me deixando incomparavelmente irritada.

Ao longo do dia, nada fazia sentido, só a frase de Jack e os mistérios que o doutor jogava no ar. A sensação de asfixia foi dominando. E mal da criatura que não sabe desabafar: se sufoca até que alguém chegue e encha forçadamente seus pulmões.  Sufocar-se conscientemente é impossível. Bom, pra mim não. E aí, antes de admitir que você precisa de ajuda, antes de se mostrar vulnerável, o consolo de todo humano que se preze: um boteco.

“Doutor, hoje eu vou me embriagar. De raiva. Algo está me deixando fraca, sugando minhas energias. Esse algo sou eu mesma e um sentimento estranho que me deixa a mercê de minhas fraquezas. Eu jamais chamarei um abismo de oasis. E me deparei com ele. Mas eu não vou pular. Ainda não. Não vou pular até que esse seu rosto de galã de quinta categoria com esse sorriso que era pra ser sexy e no entanto é nojento e a frase de Jack me mostrem que realmente vocês tem razão. E o senhor se prepare, porque antes de cair, ainda o culparei muito por não ter conseguido me curar desse mal. Lembra-se o porquê de eu ter o procurado? Lembra-se o que aquele classificado de jornal onde achei seu número prometia?  O senhor pode ser processado por isso. Está fazendo o contrário. Antes eu tivesse vendido minha alma pro diabo...”

Uma dose, duas doses, três doses e o mesmo pensamento. Que pensamento é esse que anda me corroendo? Essa coisa estranha que me deixa em estado de alarde desde aproximadamente 23 horas do dia 26 de dezembro?  Como algo tão pequeno (literalmente) pode ocupar tanto espaço? Eu cavei meu abismo! Eu cavei meu....

“Jack? Voltou? Não saia daqui agora. Não antes de me dar uma explicação”

“Admita! É a explicação que você merece.”

Num ato reflexo, com essas palavras mais teor alcoólico, junto à visão do que considero meu abismo e pouco antes de desmaiar, vem a consciência súbita e indevida e o ponto positivo pros meus maiores ‘ini-(a)migos’.

A Pangeia vai se transformar...

Admito. Meus pensamentos são fieis a ele.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Onde um desafio pode levar



            Após percorrer algumas quadras em plena madrugada observando a rua escura, com pequenos grunhidos de animais que nem sei quais são, fui pensando em tudo o que me tem ocorrido ultimamente e que tem na maioria das vezes me tirado o sono e me colocado em momentos de reflexão compulsivos:  horas olhando para o teto, horas me arrancando um sorriso idiota e sem motivo, horas me levando a sentar numa cadeira de plástico no terraço e ter esse momento contemplativo, tido como uma cochilada normal de alguém na laje. Eu queria ser como um desses bichos da madrugada!  (Preciso dizer isso ao Doutor). Sou uma pessoa boemia. Tenho fascínio pela noite e pelas suas possibilidades. Gosto de passá-las acordada em boas companhias ou mesmo só fazendo coisas que me agradam.  A Lua é a paixão de qualquer humano que se preze. O Sol também é belo, mas esquenta muito, clareia muito e põe a vida dentro dos conformes. Não sou uma mulher de conformes.  Aliás, que tipo de mulher sou? Tenho uma opinião formada, mas creio que essa opinião muitas vezes tenha o poder de assustar e até mesmo afastar as pessoas.  Sou como qualquer outra, às vezes, confesso um pouco mais sensível e com dilemas que me tornam problemática. Mas tenho as vontades de uma mulher normal em ter uma vida legal, ao lado de uma pessoa legal, uma velhice legal. Coisas clichês, que, no entanto se diferenciam pela minha maneira de ver o mundo e pelos meus gostos que confesso, não são na maioria das vezes nos padrões  das pessoas que são julgadas corretas no mundo. Mas quem é correto no mundo? Ah, não me importo. Tudo tem seu momento certo.
          Então, depois de umas quadras envolvidas em tantos pensamentos que não tem uma lógica ou continuidade sequer, chego ao destino final. Aquela casa velha, rústica, com aquele divã onde sento e posso contar todas as minhas verdades. Desenfreadamente dou meus delicados toques na porta. O Doutor sempre sabe quando preciso dele nesses momentos de emergência existencial.
           - Doutor,  abre essa porta. Preciso muito conversar com você!
         Ele vem, enrolado em seu roupão, e com toda a gentileza do mundo abre a porta com aquele sorriso que me leva à loucura por me trazer todo o conforto do mundo.
          - Você por aqui noturna? Já era de se esperar. Há tempos sequer manda sinal de fumaça. Aliás, já conversamos sobre a fumaça. Espero que tenha se afastado ao menos um pouco dela.
          - Sim Doutor, as vezes sigo os seus conselhos, acredite em mim. Será que podemos conversar um pouco? Há algo em mim que anda me sufocando e sei que subjetivamente ao lhe contar você saberá do que se trata e me dará nem que seja o olhar certo.
           - Entre noturna. Sei que quando algo lhe deixa assim o meu divã é o que precisa para se abrir. Mas enfim, você se abre em enigmas. És uma mulher bem estranha. Creio que tenha dificuldade em conviver com as outras pessoas ou que use máscaras para elas.  E acho que será assim até que encontre outra pessoa que lhe compreenda do seu jeito. Aí sim se sentirá mais solta. Ou alguém que lhe conheça nas entrelinhas. Mas venha comigo.
          ‘Vade mecum’ e sente-se. Vamos começar. E dessa vez, faça o monólogo se necessário.
          - Doutor. Eu queria ser um bicho da noite. Como os que ouvi quando vinha pra cá. Esse fetiche pelo céu escuro nunca se cura. É nas noites que vivo, nas noites que sinto, nas noites que me encontro. Como uma coruja, um morcego, um vampiro. ..
          Ele me interrompe abruptamente me fazendo virar do divã e olhar para ele. Olhos nos olhos. Como odeio! Odeio olhos nos olhos Doutor. Aprenda de uma vez isso.
          - Querida, sei que deveria lhe deixar falar, mas sinto pela sua voz e pela rapidez com que fala que está mudando o seu foco. Pare de fugir do assunto. Quando você fala muito, eu sei que tenta se esconder. Vamos. Tome essa xícara de café, feche os olhos e fale o que está acontecendo.
          Realmente me assustei. Não esperava essa reação dele. Mas obedeci aos comandos e resolvi desenvolver o meu monólogo com toda a paz que eu me propusesse a ter. E se não tivesse. Adeus xícara. Você vai pro espaço.
          - Doutor, eu estava esperando a passagem dos dias na busca de minha inspiração. Eu tenho medo das inspirações. Desculpa Doutor, hoje tudo será muito subjetivo. Se algum dia alguém souber do que digo, preciso ter sido um pouco rebuscada para que a interpretação não seja tão fácil. A inteligência tem me deixado pensando mil vezes antes de falar. Inteligência ou feeling pelo assunto, ou técnicas estudadas. Não sei bem.  O fato é que, tenho medo do jardim murchar. Tenho  medo de quantas flores possam ser arrancadas dele. E de quantas pintas do dálmata podem sumir e do quanto o gel pode abaixar algo que tanto me atrai.
           Sabe as coisas impossíveis Doutor? Elas me movem e eu não me canso de lutar por elas. Dizem que no impossível a concorrência é menor. Mentira Doutor. A concorrência é maior e injusta. Composta pelos artigos mais belos de um antiquário, pelas peças mais caras de uma joalheria, pela matéria esculpida em carne normal, mas lapidada com perfeição não sei se por uma vaidade tola e fútil ou por uma vaidade tola e fútil mesmo. Vejo beleza, uma beleza injusta, mas não vejo o que a complementa, o que a torna bela e fundamental. E aí penso se estou julgando demais. Ah! Justo! Estou Doutor. Estou julgando. Mas essa beleza sempre vence o conteúdo. Isso me amedronta muito. Isso ameaça o jardim, ou a companhia que uma vez disseram ser ideal. Doutor, esse meu prazer por coisas estranhas afasta e coloca outras acima. E mais, até eu mesma as coloco acima. Onde está o amor próprio em tudo isso? Não sei. Nunca me apontaram o porquê eu devesse o ter.  Eu vejo a beleza por tantos os cantos e murcho com ela. Sinto-me ameaçada. Mas é o impossível que me mantém. É por ele que sinto razão e vontade ao lutar. Os desafios... Ah Doutor eu sou viciada em desafios. Ainda mais desafios das noites. E quando noites e desafios se completam, é fato. Eu perco a cabeça.
           - Querida, desafios são as tarefas ou situações que testam habilidades ou o ato de lutar para conquistar algo ou alguma coisa.
            - Comecei ainda bem nova por essa etapa. Sempre desafiei tudo o que pude. Sem medo algum de perder. Mas na maioria das vezes eu ganhei com êxito. Como nos festivais de poemas da escola, às olimpíadas de matemática, às propostas aos meus pais, vestibulares, graduações, amores a primeira vista, o sorriso do cara carrancudo e mal humorado que ninguém pensava conseguir. Doutor, o que é intangível na teoria é a coisa mais linda do mundo. Gosto do intocável, do inalcançável, do que se faz impossível pra mim. Do que me intimida e me desafia. Me desperta lágrimas e sorrisos.
          - E qual a sua dúvida?
       - Devo tratar como desafio ou como algo imaculado e respeitar ficando simplesmente nesse platonismo tão lindo que cultivo e que me faz bem/mal/sorrir/chorar... Luto pelo inalcançável, mesmo sendo a concorrência injusta e bela? Calo-me? Mostro-me? O que faço Doutor? Eu amo desafios. Mas este está me levando à loucura. Já não seria a hora de ver que devo me curvar e que esse desafio me venceu? Deixá-lo como algo imaculado é o melhor? Ou devo continuar na busca do toque e entrar nessa guerra? Ah Doutor, me olha, deixe-me vê-lo e aceitar o que seu olhar vai me  mostrar mais uma vez o que suas palavras vão diriam.
         - Noturna, não terás apenas meu olhar. Esse seu prazer pela noite, talvez diga tudo o que alguém deve escutar.
         - O que acha sobre essa situação Doutor?
         -  Posso definir a você com quatro letras ou com seis letras. Qual você prefere?
       - Prefiro que o senhor cale a boca. A Lua ainda está muito bela. Preciso ir embora pensar no imaculado sem essas suas definições. Elas me amedrontam.